Desnutrição associada ao câncer é um assunto que tem me provocado muitos sentimentos, desde preocupação à indignação.
Há 30 anos, quando cheguei à universidade para cursar Nutrição, aprendi que a desnutrição era um problema sério – na época a ênfase era na desnutrição infantil e em doentes internados. Mais tarde, quando fui trabalhar com nutrição oncológica, a desnutrição se apresentou como um fantasma que aterroriza, mas não é visto até que a caquexia se apresenta.
A desnutrição associada ao câncer é fator de risco para o tratamento e para a própria vida, com graves consequências porque está associada a uma doença que provoca muitas alterações metabólicas e imunológicas. O diagnóstico tardio do câncer, muito comum em países em desenvolvimento como o Brasil, agrava ainda mais a desnutrição, tanto na detecção quanto no tratamento.
O sentimento de preocupação deve-se ao fato de que precisamos – todos os profissionais de saúde – estar atentos para não perdermos a oportunidade de atuar preventivamente, sempre que possível. Já o sentimento de indignação é por causa do descaso de muitos profissionais de saúde que atuam na oncologia, principalmente médicos e enfermeiros, que são os principais atores no cuidado desses doentes, mas na maioria das vezes, nada fazem para reverter esse quadro. Estudos mostram que oncologistas médicos e outros profissionais de saúde que tratam de pacientes com câncer parecem negligenciar as questões nutricionais, o que caracteriza uma falta de segurança e responsabilidade do cuidado, haja vista os impactos negativos provocados pelo câncer nas dimensões físicas, sociais, emocionais, financeiras, tanto na vida dos doentes quanto de seus familiares e cuidadores.
Falar de desnutrição associada ao câncer é necessário e urgente, por isso, durante o mês de março fiz um post semanal no Instagram e compartilho aqui com a grande esperança de alertar sobre o perigo da desnutrição. O combate à desnutrição não depende de um profissional, mas da consciência dos que cuidam e dos que são cuidados. Todos somos responsáveis, seja o profissional, o familiar ou o cuidador contratado.
No final disponibilizo alguns artigos. Boa leitura.
Desnutrição na pessoa com câncer: o que é?
Perder peso para muitas pessoas é um sonho, mas diante de um câncer, todo cuidado é pouco. A desnutrição associada ao câncer é uma condição clínica grave devido às alterações metabólicas e imunológicas provocadas pela doença. Isso inclui, muitas vezes, perda de apetite com redução significativa do consumo de alimentos, desânimo, fraqueza e a famosa perda de peso que pode ser gradativa e lenta ou progressiva e rápida. Muitas vezes a perda de peso é o motivo da pessoa ir ao médico e descobrir o diagnóstico do câncer. A perda de peso espontânea maior de 5% em menos de 3 meses com redução de apetite é um alerta. A desnutrição precisa ser corrigida porque é um fator de risco independente para outras doenças e morte, além de prejudicar a resposta terapêutica aos tratamentos e piorar a qualidade de vida.
Desnutrição na pessoa com câncer: as consequências podem ser nefastas.
No início, o apetite está um pouco reduzido, a pessoa um pouco desanimada e nada é feito. Pouco tempo depois, já se foram 5kg. Aí vêm as queixas de cansaço, desânimo pra comer, pra fazer alguma atividade de rotina, desânimo de viver. Depressão? Às vezes sim, mas certamente a desnutrição também está presente nesse quadro. Toda pessoa com câncer, mesmo com excesso de peso, corre o risco de desnutrir. Por isso a intervenção nutricional deve ser precoce. Se você é profissional de saúde, seja preventivo e atue para tratar a desnutrição. Se você é paciente/cuidador, seja ativo e participativo nas suas consultas; solicite um nutricionista. No tratamento de câncer, todo cuidado é pouco para o doente não desnutrir.
Desnutrição na pessoa com câncer: pode ser prevenida.
Embora a doença, principalmente o câncer na fase avançada, seja um fator de risco para a pessoa desnutrir; os efeitos colaterais dos tratamentos (quimioterapia, radioterapia, cirurgia) aumentam ainda mais esse risco. Por isso, é necessário que todo doente com câncer passe, o mais rápido possível, por uma triagem nutricional, onde será identificado o quão vulnerável ele se encontra para o determinado tratamento que será submetido. Alguns tratamentos, como cirurgias do aparelho digestório, por exemplo, de esôfago, de estômago e de intestino provocam maior perda de peso e aumentam o risco de desnutrição. O mesmo acontece com radioterapia na região de cabeça e pescoço – o doente, muitas vezes, tem muita dificuldade de mastigar e engolir, e perde muito peso. Outra situação crítica são as quimioterapias, por exemplo, o 5-Fluorouracil causa muita diarreia e ou mucosite (feridinhas na boca, no esôfago, ou em todo o trato digestório). Em idosos e pessoas já desnutridas (inclusive obesos) o risco é pior. Esses exemplos mostram que alguns doentes têm risco de desnutrir mais rápido que outros; mas todos correm riscos. É responsabilidade do profissional de saúde que assiste esse doente (médico, enfermeiro, etc.) identificar o perigo e encaminhar para o nutricionista. No tratamento de câncer, todo cuidado é pouco para o doente não desnutrir.
Desnutrição na pessoa com câncer: pode ser tratada.
Se o câncer e os tratamentos anticâncer são fatores de risco para a desnutrição, então o doente deve receber assistência nutricional tão logo tenha o diagnóstico da doença. Na assistência nutricional o doente é avaliado, orientado de acordo com as necessidades clínicas e dietéticas, os hábitos alimentares, as doenças de base, e outras informações importantes para atendê-lo na sua particularidade. A partir de então, é apresentado um plano de cuidados nutricionais que darão condições do doente ter uma alimentação adequada em calorias, proteínas, vitaminas, minerais, água e fibras conforme sua realidade. Além da prescrição de algum suplemento nutricional oral toda vez que houver necessidade. Tanto o doente quanto sua família são ouvidos, acolhidos, orientados e esclarecidos quanto ao controle de sintomas, às dúvidas alimentares, às possíveis mudanças da via de alimentação (sonda para alimentar). O monitoramento ao longo de todo o período do tratamento e após o tratamento é uma estratégia promissora para tratar e evitar a desnutrição porque todo cuidado é pouco.
Desnutrição na pessoa com câncer: se não cuidar mata antes da doença.
O câncer e seus tratamentos provocam alterações no metabolismo e no sistema imunológico, configurando alto risco para desnutrição, pois acomete aproximadamente 40 a 80% de todas as pessoas com câncer durante o curso da doença. No câncer avançado o risco de desnutrir fica ainda maior. Estudos mostram que no mundo 10-20% morrem de desnutrição e não do câncer. Esses dados são alarmantes. Segundo a estimativa mundial de 2018, de acordo com o site do Inca, foram 9,6 milhões de óbitos no mundo por causa do câncer. Se fizermos uma conta rápida, verificamos que a quantidade de pessoas que morrem de desnutrição associada ao câncer varia entre 960 mil (10%) a quase 2 milhões (20%) de pessoas. Isso significa que a diagnostico de desnutrição é uma segunda ameaça de morte, visto que o câncer avançado não tem cura. Esse assunto é muito sério, precisa ser exposto e refletido, para juntos mudarmos esse quadro tão triste.
Bibliografia consultada
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