“Ter grande dor é ter certeza; ouvir que outra pessoa tem dor é ter dúvidas” (1)
Desde 2018, enquanto me preparava para escrever um capítulo de livro em um Tradado de dor oncológica (2), venho tendo mais atenção sobre o tema dor. Um fenômeno que tem várias origens e pode ter consequências diversas, afetando o ser humano em diferentes dimensões: corpo, emoções, comportamento, relações, espiritualidade, sabe-se lá mais o que.
O que estudei foi tão impactante que mudou radicalmente meu modo de olhar a dor do outro, sobretudo de minhas pacientes em tratamento de câncer que precisavam perder peso, mas não conseguiam introduzir a caminhada como rotina devido às frequentes queixas de dor. Às vezes, essas dores estavam associadas ao medicamento, à fascite plantar (muito comum na em pessoas com excesso de peso) e outros problemas. Sem falar da dor emocional, que muitas apresentavam, que relacionada à vergonha pelo excesso de peso ganho durante o tratamento, no qual tiveram que usar corticoide por vários meses. Vale lembrar que uso prolongado de corticoide causa cansaço e dor de cabeça, além de dezenas de efeitos colaterais, que também minam a energia de qualquer pessoa.
No meu livro Comendo com prazer até o fim (3), tem um capítulo intitulado “Quem tem dor tem pressa” em que eu abordo a importância do controle da dor no quesitos alimentação e nutrição. Um paciente com dor não come, não se hidrata, não vive. Logo, o controle da dor é essencial.
A dor é um sintoma subjetivo que se manifesta de forma aguda (até 4 semanas) ou crônica (mais de um mês); de intensidade leve, moderada ou severa. Não é possível pegar, ver, medir a dor de forma concreta. O que vale é o relato de quem tem a dor. Por isso, infelizmente, quem tem dor nem sempre é acreditado. “As pessoas com dor crônica são frequentemente assombradas pela perspectiva de que aqueles de quem dependem para tratamento, apoio e empatia podem não acreditar nelas.” (4)
Em 1996, a antiga Sociedade Americana de Dor, caracterizou a dor como o 5º sinal vital (os outros quatros são: frequência cardíaca, frequência respiratória, pressão arterial e temperatura). Mesmo assim, os dados mostram que a dor ainda é mal diagnosticada e subtratada. Um estudo de 2006 revelou que após a avaliação no prontuário de 79 pacientes de um determinado ambulatório, observou-se que “pacientes que relataram dor substancial muitas vezes não receberam os cuidados recomendados: 22% não tiveram atenção à dor documentada no prontuário médico, 27% não tiveram nenhuma avaliação adicional documentada e 52% não receberam nenhuma nova terapia para dor naquela visita” (5).
Esse quadro pode ficar mais grave quando falamos de pessoas que usam opioide para o controle de dor crônica. Esses medicamentos costumam causam grandes transtornos gastrintestinais, que varia de náuseas, má digestão, até a constipação severa que chamamos de constipação induzida por opioide. Esse quadro é observado em quase 100% das pessoas que usam opioide e é tão temido quando a dor crônica. Mas infelizmente também é banalizado (4).
Recentemente o jornal americano The Washington Post fez uma denúncia que não reverberou aqui no Brasil, mas é de suma importância, pois aqui o cenário não deve ser melhor. A reportagem aponta que estudos mostram o grave viés de gênero no atendimento de mulheres com queixa de dor. Os relatos são tão absurdos que parecem até cena de tortura, por exemplo (5):
Dezenas de mulheres reclamaram de dores torturantes quando suas paredes vaginais foram perfuradas durante um processo de coleta de óvulos. Eles foram informados de que sua dor era normal, mas, na verdade, eles estavam recebendo solução salina em vez de anestesia.
Uma análise de 981 atendimentos de emergência mostrou que as mulheres com dor abdominal aguda tinham até 25% menos probabilidade do que seus colegas do sexo masculino de serem tratadas com poderosos analgésicos opioides.
Outro estudo mostrou que mulheres de meia-idade com dor no peito e outros sintomas de doença cardíaca tinham duas vezes mais chances de serem diagnosticadas com uma doença mental em comparação com homens que apresentavam os mesmos sintomas.
O jornal ainda apresenta diversos depoimentos horripilantes com o descaso que os profissionais tiveram com a mulheres. A relevância de falar desse assunto é porque a dor não é um problema apenas meu, nem seu; é de todos nós que somos vulneráveis a qualquer tipo de dor – seja ela física ou emocional. Ainda que a dor não te afete, certamente afeta alguém do seu convívio, embora na maioria das vezes não sabemos bem como lidar com a dor do outro. Conforme disse Scarry (1) “Como a pessoa com dor geralmente é tão desprovida dos recursos da fala, não é surpreendente que a linguagem para a dor às vezes seja criada por aqueles que não estão com dor, mas que falam em nome daqueles que estão.”
A autora, no entanto, nos adverte que nem sempre aqueles que poderiam acolher a pessoa com dor o fazem com tanta fidedignidade, pois não é possível expressar a dor alheia. E para piorar a situação, o médico que deveria saber ouvir, interpretar, diagnosticar e tratar adequadamente a dor, não o faz, pois ele “de fato, percebe a voz do paciente como um “narrador não confiável” de eventos corporais”. (1)
Mas se o único sinal externo da experiência sentida da dor (para o qual não há alteração no hemograma, nem sombra no raio X, nenhum padrão na tomografia computadorizada) é o relato verbal do paciente (porém ele próprio insuficiente), então contornar a voz é contornar o evento corporal, contornar o paciente, contornar a pessoa com dor. Assim, pode-se acreditar na realidade do câncer radiografado de um paciente, mas desacreditar na dor que o acompanha e na prescrição insuficiente de medicamentos para a dor. (1)
Para que a saúde seja verdadeiramente humanizada precisamos saber ouvir e diagnosticar sem fazer juízo de valor. Mesmo diante de casos “fakes”, somente um bom acolhimento e diagnóstico poderão juntos diferenciar o que é “real” ou não.
Bibliografia consultada
- Scarry E. The body in pain: the making and unmaking of the world. Oxford: Oxford University Press; 1985.
- Benarroz MO, Denolato A. Aspectos nutricionais no paciente oncológico em cuidados paliativos. In Da Fonseca, P. R. B.; De Barros, C. M. (Orgs). Tratado de Dor Oncológica. Rio de Janeiro: Atheneu, 2019.p. 309-319.
- Benarroz, M. Comendo com prazer até o fim: o papel da alimentação na vida de pessoas com câncer anaçado na perspectiva dos cuidados paliativos. São Paulo: Scortecci, 2020.
- Epstein RS, Teagarden JR, Cimen A, Sostek M, Salimi T. When People with Opioid-Induced Constipation Speak: A Patient Survey. Adv Ther. 2017 Mar;34(3):725-731. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28181146/. Acesso em jan 2023.
- Mularski RA, et al. Measuring pain as the 5th vital sign does not improve quality of pain management. J Gen Intern Med. 2006 Jun;21(6):607-12. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16808744/. Acesso em jan 2023.
- The Washington Post. From heart disease to IUDs: How doctors dismiss women’s pain. Disponível em: http://bit.ly/3Y7GeUF. Acesso em jan 2023.