Em março, mês em que se homenageia a mulher, publiquei uma série de posts no Instagram sobre cuidado com foco na saúde. Isso porque na compreensão de muitos estudiosos a mulher é a principal responsável pelo cuidado, sobretudo do cuidado materno e familiar (Engle 1996). Embora esse assunto tenha muitos desdobramentos de cunho social e político (não é nosso foco), o fato é que as mulheres apresentam certas habilidades emocionais diferentes dos homens que as tornam imprescindíveis em diferentes atuações. Segundo Maria Tereza Leme Fleury, mulher e especialista no assunto, “Há competências que diferenciam o estilo de gestão feminina, como o multiprocessamento de informações, maior flexibilidade e habilidade de enxergar as pessoas como um todo, e não apenas no âmbito profissional” (Fleury, 2013). A autora não engessa o comportamento da mulher nem do homem e concorda que ambos podem ter traços um do outro se complementando. Afinal, “Se os homens são melhores em inovação e manipulação de materiais, as mulheres se destacam em promover a união e a cooperação” (Fleury, 2013), o que não deixa se ser uma expressão de cuidado.
Entretanto, este texto discorre sobre o cuidado na saúde – onde a mulher também é muito mais cuidadosa. Mas o foco aqui não é nas mulheres, mas em todos os atores sociais que atuam tanto na assistência quanto na administração e na gestão; nos bastidores ou no front. Conforme nos adverte Leonardo Boff, “O regate do cuidado não se faz às custas do trabalho. Mas mediante uma forma diferente de entender e de realizar o trabalho. Para isso, o ser humano precisa voltar-se sobre si mesmo e descobrir seu modo-de ser-cuidado” (Boff, 2005)
Seguem os posts numa forma de leitura contínua para facilitar a reflexão e a compreensão. Espero despertar em você mais atenção nesse assunto. Boa leitura.
“no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir” (Leonardo Boff)
A palavra cuidado tem muitos significados. Além disso está intimamente ligada à vida, ao modo de ser e viver, de trabalhar e de se relacionar consigo, com o outro e o mundo. O cuidado é manifestado de muitas formas: agindo, comunicando, recuando, silenciando, abraçando, se afastando. Tudo dependerá da demanda, mas tudo deve ser feito visando o bem comum; embora o cuidado, muitas vezes, exija sacrifício. Nesse mês de março, vamos pensar o cuidado na perspectiva de alguns teóricos. Hoje eu deixo a contribuição de Leonardo Boff, que publicou dois livros que trata do tema, além de outras tantas publicações.
“O cuidado é, na verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência. No cuidado se encontra o ethos fundamental humano. Quer dizer, no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir.” (do livro Saber cuidar, Boff 20ª ed. p. 11)
“Uma das chaves para humanizar as relações é considerar o cuidado como arte” (José Carlos Bermejo)
Cuidado e humanização devem andar de mãos dadas. Na realidade, deveriam ser sinônimos, mas infelizmente tais palavras estão muito mais presentes na literatura acadêmica do que na prática assistencial. A situação chegou num ponto que foi necessário criar uma Política de Humanização (HumanizaSus), que até hoje não vingou. Embora esteja bem escrita, os conceitos e as propostas esbarram na vontade de fazer daqueles que trabalham na saúde, seja de forma direta ou indireta com os pacientes. Segundo Bermejo, “Uma das chaves para humanizar as relações é considerar o cuidado como arte.” O autor enfatiza que que mesmo com o desenvolvimento tecnológico, não há motivos para desumanizar, porque é o ser humano quem usa a tecnologia. Então é possível, mesmo usando a tecnologia usá-la com humanização e para gerar mais humanidade. Não há desculpas para não cuidar.
“O cuidado é o permanente companheiro do ser-humano” (Horácio, poeta romano da antiguidade)
Se tem uma coisa que o ser humano precisa desde sempre é de cuidado. Do início ao fim das nossas vidas, em todo tempo nós somos carentes e dependentes de cuidado. Seja no sentido de zelo, de proteção, de atenção, de prudência, de cordialidade, de responsabilidade. O cuidado também pode realizado através da comunicação conforme destacado pela enfermeira Maria Julia Paes da Silva, em seu texto “O papel da comunicação na humanização da atenção à saúde”. Ela trata a comunicação, entre outras coisas, como ferramenta do cuidado, sobretudo a comunicação não verbal, manifesta nas expressões faciais, corporais e até no silêncio. Fica aqui uma bela reflexão da autora: “… cuidar é muito mais do que um ato ou técnica, que cuidar é uma atitude, é o jeito como estamos diante do outro e como conseguimos compreendê-lo enquanto ser humano e não somente enquanto ser doente.”
Para quem atua na área, seja qual for a área, o cuidado é essencial.
“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” (Raposa, Antoine de Saint-Exupéry)
No clássico da literatura infantil de Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe, encontramos, no diálogo da raposa com o principezinho, uma brilhante reflexão do que é o cuidado. De maneira muito simples e ao mesmo tempo profunda, a raposa tenta mostrar para o principezinho a importância de criar laços, da amizade, do respeito.
“A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos, se tu queres um amigo, cativa-me! […] Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.”
Enquanto profissionais de saúde devemos cativar nossos pacientes, conquistar sua confiança, seu respeito e devolver-lhes cuidado com responsabilidade, cuidado com humanidade, cuidado com alteridade.
“O cuidado como valor é percebido tanto por quem cuida como por quem é cuidado” (Roseni Pinheiro)
No seu texto Cuidado como valor, Roseni Pinheiro faz coro com outros autores afirmando que o cuidado configura o ethos humano. Em outras palavras, o cuidado está na essência do ser humano. Mas para que o cuidado em saúde seja efetivo faz-se necessário pensar na produção do cuidado integral e integrado, a partir da compreensão da saúde como um direito. Se é direito, é para todos, inclusive para pacientes com câncer. Esses pacientes, infelizmente, por falta de políticas públicas eficientes não conseguem atendimento oportuno e adequado e descobrem a doença já na fase avançada e, na maioria das vezes, sem informações sobre as dificuldades que enfrentarão com o tratamento; e pior, sem uma abordagem multidimensional (incluindo avaliação nutricional) que muito poderia contribuir para o cuidado em todas as fases do câncer. “Nesse sentido, a tese de se conceber o cuidado como um valor nasce do entendimento que visa a ultrapassar esses conjuntos de sentidos, sendo que a definição de cuidado aqui utilizada o apreende como uma ação integral, que tem significados e sentidos voltados para a compreensão de saúde como o direito de ser”
Bibliografia consultada
Bermejo AC. El arte del cuidado como elemento humanizador en la era de la tecnología. Documentación Social 2018 (187), 49-70.
Boff L. O cuidado essencial: princípio de um novo ethos. Inclusão Social, Brasília. v.1. n1. 28-35, 2005.
Boff L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 20ª ed. São Paulo (SP): Vozes; 2014.
Engle PL, Menon P, Haddad L. Care and Nutrition – Concepts and measurement. Occasional paper. Washington, D.C.: International Food Policy Research Institute, 1997.
Fleury MTL. Liderança feminina no mercado de trabalho. CE, Agora é com elas. v. 12. GV Executivo, 2013.
Pinheiro R. Cuidado como um valor: um ensaio sobre o (re)pensar e a ação na construção de práticas eficazes de integralidade em saúde. In Pinheiro R, Mattos RA (Orgs.). Razões públicas para a integralidade: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: IMS/UERJ: CEPESC: ABRASCO, 2007.
Saint-Exupéry A. O Pequeno Príncipe. HarperCollins. 2018.
Silva MJP. O papel da comunicação na humanização da atenção à saúde. Revista Bioética. 2002;10(2):73-88.
Muito interessante poder refletir sobre o cuidado, principalmente por ele ser tão banalizado em dias pós pandemia.
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Verdade! Obrigada pela visita ⚘️
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