Bioética como ferramenta para tomada de decisões em cuidados paliativos

Bioética é uma disciplina que trata da vida, relativa tanto aos seres humanos quanto à natureza no seu sentido lato, abrangendo temas como vida, morte, justiça social, diversidade cultural, meio ambiente, pesquisa clínica, biotecnociência, entre outros assuntos complexos.  

Hoje nós vamos abordar a bioética na perspectiva da vida humana, da sua significância ética e finitude. De acordo Goldim (2006) a “Bioética é uma reflexão complexa, compartilhada e interdisciplinar sobre a adequação das ações que envolvem a vida e o viver”.   Nesse sentido, é possível pensar a bioética como como uma caixa de ferramentas analíticas, críticas e normativas para analisar, descrever, compreender e tentar resolver os conflitos de interesses e de valores (SCHRAMM, 2015) que podem surgir em vários situações na área da saúde devido ao avanço da tecnologia.

A bioética se consolidou com a necessidade de discutir e refletir os conflitos e dilemas morais que surgiram com os abusos na pesquisa clínica em seres humanos no início do século passado, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial. Essas reflexões tinham como objetivo solucionar os problemas de dimensões ética e moral por meio de métodos, teorias e referenciais, tais como:

1. Criação de consensos que respeitem a dignidade humana e a autonomia do paciente;

2. Estabelecimento de condutas que assegurem a beneficência e a não-maleficência do paciente;

3. Orientação de atitudes que considerem as vulnerabilidades e a qualidade de vida do paciente e de sua família;

4. Desenvolvimento da responsabilidade social e do cuidado;

5. Comprometimento com a ética profissional.

Os problemas da guerra ficaram para trás, mas os avanços biotecnocientíficos continuam levantando muitos questionamentos morais e éticos relacionados com as intervenções médicas ilimitadas, obstinadas e muitas vezes abusivas na vida de pessoas com doenças progressivas, terminais e ameaçadoras à vida.

Se por um lado, tratamento avançados como antibioticoterapia, dieta artificial (enteral ou parenteral), diálise e ECMO (Membrana de Oxigenação Extra Corpórea) têm salvado muitas vidas, por outro, essas mesmas tecnologias (e até outras) emprisionam em cima de um leito de dor inúmeras pessoas com doença progressiva e terminal. A obstinação terapêutica para o prolongamento da vida a qualquer custo se constitui uma situação reconhecidamente desumana e um desafio bioético que precisa ser debatido abertamente.

Os cuidados paliativos, por serem uma abordagem focada na prevenção e alívio do sofrimento e na qualidade de vida, têm seus princípios bem alinhados com os referenciais da bioética. Por isso, os serviços de cuidados paliativos, quando estruturados conforme o recomendado pela OMS, são compostos por uma equipe multidisciplinar, com profissionais de diferentes áreas que cuidam, orientam e acolhem o paciente até o último suspiro; fazendo o mesmo com sua família antes e durante o luto.

Ainda assim, os profissionais que atuam em cuidados paliativos devem buscar as ferramentas da bioética para fundamentar suas decisões, evitando que os valores que eles defendem possam, de alguma forma, violar os princípios bioéticos como a autonomia de decisão, o respeito à dignidade humana, a beneficência, a não-maleficência, a solidariedade, o acesso equitativo aos serviços de saúde, entre outros. São muitas as decisões difíceis que entram em cena quando lidamos com pacientes sem possibilidade de cura. Difíceis para todos os envolvidos: equipe de saúde, paciente (muitas vezes lúcido) e sua família. Por isso, as reflexões a partir da bioética se fazem necessárias para evitar a violação de direitos, o desrespeito com o próximo e outros possíveis danos que podem ser causados.

Dentre essas ferramentas, destaco os quatro referenciais da bioética complexa que Goldim (2009) descreveu que podem ser úteis em diversos cenários dentro dos cuidados paliativos:

  1. Os princípios – são deveres prima facie, ou seja, podem ser ponderados ou priorizados conforme cada caso. Dentre esses deveres estão o respeito à autonomia, a beneficência (o fazer o bem) e a não-maleficência (evitar o mal), frequentemente discutidos em casos de indicação ou suspensão de dieta artificial em cuidado de fim vida.
  2. Os direitos humanos – direitos que estabelecem as garantias individuais, coletivas e transpessoais; são utilizados na elaboração de legislações como a Constituição Federal de 1988 e a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos. A responsabilidade social e a confidencialidade são exemplo condutas que garantem a dignidade humana.
  3. As virtudes – dizem respeito à busca da excelência das ações humanas, como o autoaprimoramento. São exemplos a compaixão e a solidariedade.
  4. A alteridade – diz respeito ao reconhecimento do outro nos seus valores e na sua subjetividade. Respeitar as diversidades e considerar o desejo do outro sem descriminação são exemplos clássicos.

Certamente, cada um desses referenciais merece ser desenvolvido, mas o propósito no momento é principalmente apresentar como a bioética é fundamental para pensar os conflitos e dilemas vivenciados nos cuidados paliativos, sobretudo na fase de cuidados de fim de vida.

Pensar os processos da vida e do viver, assim como da morte e do morrer na perspectiva da bioética permite que os profissionais que atuam em cuidados paliativos possam adequar suas ações em busca do respeito da dignidade humana e da qualidade de vida de doentes e sua famílias.

Bibliografia consultada:

Benarroz MO, Faillace GBD, Barbosa LA. Bioética e nutrição em cuidados paliativos oncológicos em adultos. Cad Saude Publica. 2009; 25:1875-82.

Goldim JR. Bioética: Origens e Complexidade. Revista HCPA 2006; 26(2):86-92

Goldim JR. Bioética Complexa: uma abordagem abrangente para o processo de tomada de decisão. Revista da AMRIGS. 2009; 53 (1): 58-63.

Manual de Cuidados Paliativos / Coord. Maria Perez Soares D’Alessandro, Carina Tischler Pires, Daniel Neves Forte … [et al.]. – São Paulo: Hospital Sírio-libanês; Ministério da Saúde; 2020. Schramm FR. Três ensaios de bioética. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015.

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