Resenha do artigo Bioética e direito humano à alimentação adequada na terapia nutricional enteral

Referência: Gonçalves EC, Morimoto IMI2, Ribeiro CDG e col. Bioética e direito humano à alimentação adequada na terapia nutricional enteral. Revista Bioética [online]. 2018, v. 26, n. 2.

O artigo Bioética e direito humano à alimentação adequada na terapia nutricional enteral traz à tona um assunto importantíssimo, quase que invisível nos diferentes campos da nutrição, em especial na nutrição clínica. O Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) foi definido como o direito humano inerente a todas as pessoas de ter acesso regular, permanente e irrestrito, quer diretamente ou por meio de aquisições financeiras, a alimentos seguros e saudáveis, em quantidade e qualidade adequadas e suficientes, correspondentes às tradições culturais do seu povo e que garanta uma vida livre do medo, digna e plena nas dimensões física e mental, individual e coletiva.

O DHAA está assegurado na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutrição (LOSAN), criado pela Lei nº 11.346/2006 que institui a assim a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), cujas estratégias interagem com a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), que por sua vez, tem por pressupostos os direitos à saúde e à alimentação, sendo orientada por princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS).

O artigo tem como objetivo a reflexão sobre a incorporação do conceito de direito à alimentação adequada no âmbito da terapia nutricional enteral, sob a lente da bioética. Os autores iniciam o assunto lembrando a importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1948, em reconhecer a dignidade como sendo inerente à humanidade e nortear o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; sendo um marco axiológico da bioética internacional.

Nesse sentido, a bioética e DHAA estão presentes no princípio de responsabilidade social e saúde disposto no artigo 14 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) que determina que os avanços e progressos científicos e tecnológicos devem promover o acesso a alimentação e água adequadas. Por isso, a DHAA deve ser entendida como um direito fundamental necessário à dignidade humana e estar incorporada nas estratégias de desenvolvimento social e de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), que deve estar articulada com a PNAN e com o SUS garantindo o cuidado a indivíduos com necessidades alimentares especiais, incluindo pacientes em terapia nutricional enteral (TNE).

O artigo é fruto de uma pesquisa qualitativa, longitudinal, descritiva, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, dividida em duas partes:

1º: Revisão narrativa expondo o histórico da evolução da TNE no cenário brasileiro e apontando marcos legais e políticos.

2º: Pesquisa de campo com pacientes em nutrição enteral, internados em hospital universitário brasileiro pelo SUS, entre janeiro e abril de 2014, com o propósito de demonstrar a realidade atual da TNE em ambiente hospitalar.

O estudo foi realizado com pacientes adultos, de ambos os sexos, com prescrição de nutrição enteral via sonda ou ostomia, complementada ou não com suplementação nutricional industrializada via oral. A avaliação nutricional foi realizada para definir as necessidades nutricionais, com medidas antropométricas realizadas até 72h após o início da TNE e acompanhados diariamente durante o período de internação.

Quanto à nutrição enteral, foram analisados os motivos da prescrição da TNE, as doenças de base, as complicações associadas à nutrição enteral, as via(s) de acesso utilizada(s), as formulações de dietas enterais utilizadas, a densidade calórica das formulações, o volume prescrito e administrado, a taxa de infusão da dieta, e o número de dias necessários para atingir a totalidade das necessidades energéticas e proteicas.

Os resultados relativos à revisão de literatura mostraram que a terapia enteral teve um avanço no final de 1970 com o desenvolvimento da industrialização de formulações de dietas nutricionalmente completas e liofilizadas. A partir de então, a temática foi ganhando espaço no cenário mundial, nos campos científico e político.

Quanto aos resultados da pesquisa de campo, foram incluídos no estudo 30 pacientes com média de idade de 62±11 anos; dos quais 22 (73%) tiveram como motivo a insuficiência respiratória. A via mais utilizada para administração de dieta foi a sonda nasoenteral. Todos os pacientes receberem dieta-padrão, com adequações das formulações no quarto dia de dieta. Foi verificado que 33% não completaram o quarto dia de dieta, por motivos de mudança de via alimentar ou falecimento. Dos que permaneceram no estudo, 65% atingiram mais de 90% de adequação de calorias e proteína. Dentre as intercorrências, 17% por estase gástrica, 13% foram por causa de diarreia, 10% por obstrução da sonda. Quanto ao desfecho, 33% dos pacientes faleceram.

A partir desse cenário, os autores discutem a interface do DHAA e a TNE, destacando as conquistas da inclusão da alimentação entre os direitos sociais no artigo 6º da Emenda Constitucional nº 64/2010 – que institui a alimentação como direito – e a dificuldade de compreender a TNE, igualmente, como direito.

Gonçalves e col., retomam a historicidade das dietas enterais no Brasil, mostrado a importância da Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral (SBNPE), de caráter multidisciplinar, com ações educacionais e de defesa profissional, influenciando até em políticas públicas. Por exemplo o Inquérito Brasileiro de Avaliação Nutricional Hospitalar (Ibranutri) que, em 1996, realizou pesquisa multicêntrica em hospitais da rede pública do país com o objetivo de identificar a desnutrição em pacientes internados; e Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 63, aprovada em 2000 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) visando o regulamento técnico para fixar os requisitos mínimos exigidos para a TNE nas unidades hospitalares.

Em seguida, Gonçalves e col. apresentam as argumentações do seu estudo de campo. Destacam que i) Em alguns casos, a TNE é a única maneira de o indivíduo continuar vivo, evitando a inanição – mas que para isso a tomada de decisão depende da equipe e do aval do paciente (ou de seus familiares); ii) a TNE – classificada como via alternativa de alimentação para pacientes com necessidades especiais – é uma possibilidade de garantir o direito à alimentação adequada – defendida na DUBDH em consonância com a DHAA.

Os autores enfatizam os princípios éticos que orientam os direitos humanos, a saber:

1. Princípio da universalidade: diz respeito a todos os seres humanos independentemente de etnia, religião ou característica social;

2. Princípio da indivisibilidade: engloba os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais por serem igualmente necessários para garantir vida digna;

3. Princípio da interdependência:  refere-se à interdependência entre os princípios para sua garantia.

4. Princípio inalienabilidade: diz respeito à impossibilidade de transferência, negociação ou anulação do direito.

Nessa lógica, os autores alegam que o conceito de segurança alimentar e nutricional conta com três aspectos principais: quantidade, qualidade e regularidade no acesso aos alimentos; por isso a relação entre DHAA e TNE deve ser seguida de reflexão sobre a disponibilidade da TNE a todos que necessitam dessa intervenção; visto que são necessárias para melhorar e recuperar o doente da sua condição mórbida e nutricional, reduzindo o tempo de internação e os custos totais no âmbito da saúde.

Na amostra estuda, os autores relatam que todos receberam a dieta enteral, mas questionam a adequação nutricional/formulação da dieta conforme as necessidades dos pacientes. Apresentam alguns motivos que podem interferir na escolha da formulação e na adequação da nutrição enteral, entre eles a condição clínica do doente, mas também o fator econômico. Isso leva os autores a questionarem: i) a qualidade da assistência prestada pelos serviços dos hospitais, pois alguns pacientes ficam em jejum por tempo excessivo, o que não se justifica pelos procedimentos realizados; ii) os motivos pelos quais a dieta não é iniciada precocemente; iii) se as instituições de saúde apresentam recursos (mão de obra e financeiro) para atender a demanda de trabalho que envolve a terapia nutricional?

Na compreensão dos autores, os problemas econômicos sobrepujam em relação aos clínicos, contribuído para a violação do DHAA de pacientes internados e suscetíveis; o que os faz debater a TNE e o DHAA no campo da bioética e dos direitos humanos, a partir de princípios essenciais como vulnerabilidade, equidade e justiça; fundamentados na DUBDH, que pode ser um referencial teórico-normativo para analisar problemas relacionados à desigualdade em saúde com foco nos direitos humanos. Daí, Gonçalves e col. destacam o artigo 8º da DUBDH que trata da vulnerabilidade e da proteção dos vulnerados, se encaixando nas necessidades de TNE de pacientes com necessidades alimentares especiais devido a disfunção orgânica são indivíduos que se encontram em situação de vulnerabilidade.

Em defesa do princípio da vulnerabilidade, os autores citam Kottow que afirma que vulnerabilidade, dignidade e integridade talvez possam ser entendidas mais precisamente como descrições antropológicas da condição humana; Hossne que alega que a vulnerabilidade não só justifica a existência como também subsidia as diretrizes normativas em bioética; Schramm que defende a necessidade de priorizar os “vulnerados”, ou seja, aqueles que não estão submetidos somente a riscos de vulneração, mas a danos e carências concretas; e ainda, Malagón e Czeresnia que diz que a insegurança biológica significa vulnerabilidade.

Para defender o princípio de justiça, Gonçalves e col. finalizam a discussão com a citação de John Rawls, que defende que a justiça distributiva é uma virtude primária das instituições sociais, fruto da cooperação humana que deve visar benefícios mútuos.

Assim, os autores concluem que a TNE é uma forma de atender o DHAA para aqueles que precisam de dieta especial e que existem muitos desafios que precisam ser vencidos nessa área de discussão e nas políticas públicas.

A seguir, deixo as minhas considerações:

1. Reitero a importância do tema e a necessidade de trazê-lo para a mesa de debate da sociedade e governo. Imagino que muitos nutricionistas e demais profissionais de saúde, inclusive os gestores, não se dão conta que podem estar violando direitos, pois nem sabem que essas políticas existem; assim como os pacientes e usuários do SUS, não sabem que seus direitos estão sendo violados, nem como exigi-los.

2. Ressalto também o desafio de transformar em realidade as políticas públicas apresentadas para que, de modo concreto, os vulnerados possam ser protegidos. O DHAA está previsto na Constituição Federal, como um direito fundamental, não importa se a alimentação será por via oral ou enteral, se é para uma pessoa saudável ou doente. O direito é inalienável.

3. Os autores apresentaram três princípios essenciais: vulnerabilidade, equidade e justiça; mas deixaram de discutir a equidade, que segundo Hossne (2009) “pode ser considerada como um dos elementos integrantes da própria essência da bioética (enquanto ética), pois a equidade busca o que é justo, o que, em última análise, está intrinsecamente vinculado à ética, enquanto adequada opção de valores”.  

4. Embora o assunto seja pertinente e relevante, achei a estrutura do texto um pouco confusa quando aborda os resultados da revisão narrativa, já que essa metodologia é básica para qualquer manuscrito e o foco estava na discussão do DHAA dos pacientes conforme descrito no objetivo.  

5. Também não ficou claro, e seria uma outra discussão bioética, quais foram os critérios para a indicação de sonda dos pacientes estudados.

Finalizo, parabenizando os autores pela iniciativa e contribuição.

Bibliografia consultada:

Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília; 2013.

Hossne WS. Dos referenciais da bioética – a Equidade. Revista – Centro Universitário São Camilo – 2009;3(2):211-216

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