Referência: Gomes ET, Brandão BMGM, Abrão FMS, e col. Contribuições de Leonardo Boff para a compreensão do cuidado. Rev enferm UEPE on line; 12(2): 531-536, fev.2018
O artigo “Contribuições de Leonardo Boff para a compreensão do Cuidado”, traz uma análise crítico-reflexiva feita por Gomes e col. – todos do Programa Associado de Pós-Graduação em Enfermagem, da Universidade de Pernambuco e da Universidade Estadual da Paraíba -, sobre dois livros do teólogo e filósofo Leonardo Boff, a saber, o Saber Cuidar e O cuidado necessário, ambos objetos de estudo de seus autores, durante a disciplina Fundamentos Teóricos, Históricos e Filosóficos do Cuidar. Conhecido ícone da Teologia da Libertação, Boff tem uma brilhante carreira como escritor, palestrante, professor de universidades nacionais e internacionais; honrado com vários prêmios por sua incansável luta em favor dos fracos, dos oprimidos e marginalizados, e dos Direitos Humanos, dentro e fora do país.
O objetivo central do artigo está na reflexão sobre a contribuição literária de Leonardo Boff para a compreensão do cuidado na enfermagem. Os autores entendem a necessidade de a enfermagem manter atualizada a reflexão e a busca pelo aclarar dos valores e ideais da profissão; visto que a enfermagem tem um papel preponderante no reconhecimento do homem enquanto pessoa, ao poder proporcionar-lhe assistência humanizada e individualizada, embora a literatura aponte que os enfermeiros de que atuam diretamente com os pacientes têm compreensões de cuidado nitidamente marcada pela tônica da produção, ao invés de perspectivas mais ampliadas e integrativas, metaparadigmas do arcabouço teórico da enfermagem.
Gomes e col. definem o cuidado a partir da perspectiva de Heidegger: O cuidado é um estado primordial e constitutivo do ser, dando sentido ao ser-no-mundo, ao mesmo tempo que se configura como um modo existencial de ser no mundo com o outro. Desse modo, os autores entendem que o enfermeiro deve primeiro se auto(re)conhecer na condição de ser-no-mundo antes de travar contato com a individualidade alheia e reconhecer-se como ser-com-o-outro.
Não obstante, Gomes e col. tenham citado Heidegger, o cerne do artigo se dá na reflexão e compreensão do cuidar e do cuidado a partir da perspectiva de Leonardo Boff, como referencial filosófico para responder questões: 1) ontológica – O que é cuidado em enfermagem? 2) epistemológicas – Como a enfermagem cuida? Como se dá para a enfermagem o conhecimento do cuidado? 3) fenomenológica – Quais e como se dão os fenômenos que ocorrem no cuidar em enfermagem? Já como referencial antropológico, para responder à questão: como a enfermagem entende o ser e aceita as suas relações consigo e com o outro? Os autores ressaltam que a análise não foi baseada na antropologia da saúde, focada no processo saúde-doença-finitude; mas no ser-cuidado e o ser-cuidador, ambos como indivíduos que têm por essência o cuidado, conforme a compreensão de Boff.
Após a leitura dos livros, a discussão e a seleção do corpus análise e reflexão, foram apresentadas as categorias temáticas em três eixos, conforme abaixo:
1) Compreendendo o cuidado: Na perspectiva ontológica, o cuidado é inerente ao ser humano e não se esgota em si mesmo; é uma atitude, fonte permanente dos atos, que se deriva da natureza do ser humano, mas para essa compreensão faz necessário que o homem se perceba parte da natureza com a responsabilidade de protegê-la, regenerá-la e cuidá-la. Boff desenvolveu um sentido de cuidado baseado na teoria de base do pediatra e pensador inglês Winnicott que também defende a premissa que o cuidar é constituinte da essência humana. Na perspectiva de epistemológica, Boff diferencia dois cuidados: o natural-objetivo, em que “somos seres profundamente eco dependentes, portadores de uma carência fundamental que é suprida pelas pessoas, pela cultura e pelos recursos e serviços da natureza”; e o ético-consciente é aquele que “o cuidado assumido de forma consciente, de modo reflexo, como valor, interiorizado de forma intencional e feito atitude e projeto de vida”.
Gomes e col. fazem uma analogia entre a perspectiva de Heidegger e de Boff no contexto da enfermagem e apontam que o cuidado ocorre numa via de mão dupla entre dois atores sociais, o enfermeiro – detentor do saber – e o paciente – receptor da atenção, reforçando o cuidado como intrínseco à enfermagem e fundamental à relação profissional-cliente.
2) Cuidado no cerne da mudança paradigmática em saúde: implicações para a enfermagem: existe uma necessidade de mudança de paradigma, substituindo o cartesiano pelo holístico e integrativo, norteando uma nova práxis do cuidado em saúde, centrado na pessoa como um ente integral e integrante. Boff descreve a fenomenologia do cuidado de duas formas de ser-no-mundo: o trabalho e o cuidado. No primeiro, o ser está relacionado à capacidade de transformar, produzir, de prescrever. No segundo, as relações são pautadas na convivência, interação e comunhão. Todavia, há um grande desafio em aliar trabalho e cuidado; já que por causa do trabalho, atributos como criatividade, ternura e espiritualidade, assim como o próprio cuidado ficaram prejudicados. Daí a necessidade de pautar o cuidado como um compromisso de um cuidado holístico, com a ética, o respeito e a valorização da vida humana.
3) Cuidado na práxis da saúde e enfermagem: Embora Boff tenha escrito pouco para profissionais, ele apresenta o conceito do cuidado na perspectiva de Heidegger, diferenciando entre o cuidado autêntico (aquele que se coloca na posição de ser-com-o-outro e não ser para o outro, ou seja, respeita a autonomia do outro, reconhece sua individualidade e sua integralidade); e o cuidado inautêntico (não há cuidado de si ou há um cuidado que faz o outro dependente e submisso). O autor também questiona a definição ampliada de saúde da OMS que desconsidera os constrangimentos e a vulnerabilidade intrínseca do ser humano. Boff apresenta a evolução do cuidado em saúde, inicialmente centrado no sujeito (profissional), depois nos meios (protocolos, etc.), e mais recentemente (últimos 50 anos), mais focado no paciente e seus cuidados, período que surgem as teorias da enfermagem. Mediante isto, Gomes e col. entendem que a enfermagem, enquanto disciplina, profissão ou prática social, precisa possuir como dimensão axiológica a capacidade de agir com solidariedade e enxergar a pessoa cuidada em sua totalidade; igualmente ser crítico e capacitado para identificar as necessidades do ser humano.
Finalmente, Gomes e col. concluem que o cuidado deve estar atrelado ao respeito à singularidade e à dignidade humana e que o fenômeno de cuidar caracteriza-se como essência da enfermagem que deve agir com ética.
Após a exposição do artigo, convém fazer algumas considerações. Primeiro, ressaltar o quão interessante foi ver a transformação de um debate de grupo de estudo de pós-graduandos em artigo científico, apresentando um assunto comum, muitas vezes banalizado, na área da saúde numa perspectiva filosófica e antropológica. Reitero a importância e a urgência de refletir o cuidado, fazendo uma provocação para que os profissionais de saúde tragam para si as questões ontológicas, epistemológicas e fenomenológicas do cuidado na sua área de atuação, generalizando o debate.
Por se tratar de um artigo reflexivo, imaginava menos romantismo em relação à vocação do cuidado da enfermagem como se fosse um atributo quase que exclusivo e sacramentado. Nesse sentido, por mais que a enfermagem tenha um papel essencial e relevante no cuidado, a reflexão e a discussão dos conceitos de Leonardo Boff sobre cuidar e cuidado, certamente, podem ser aplicadas a qualquer profissional de saúde, cuja missão, de antemão, é (ou deveria ser) o cuidado.
Quanto à estrutura do texto, acredito que o artigo poderia estar mais bem estruturado por se tratar de um artigo acadêmico. Por exemplo, o texto não apresentou nenhuma referência sobre a metodologia reflexiva nem a explicação de como chegou aos três eixos temáticos. Penso que essas informações valorizam os resultados e sobretudo o posicionamento dos autores.
Outra observação diz respeito às reflexões que, acredito, pela densidade do tema, poderiam ter sido mais provocativas quanto às práticas de cuidado da enfermagem, assim como dos demais profissionais de saúde, embora o objetivo fosse a enfermagem.
No mais, parabenizo os autores pela iniciativa e contribuição.