Assistência nutricional no câncer e o pensamento complexo de Morin

Edgar Morin, sociólogo, filósofo e célebre escritor francês, entre outras tantas competências, mudou o mundo (ou parte dele) no seu modo de pensar a vida a partir da complexidade que a mesma apresenta. Dessa forma, ele oferece uma perspectiva integradora e plural de uma análise do presente, do homem, da sociedade, da natureza, da singularidade de cada um… Em outras palavras, mostrou que é impossível pensar e compreender a realidade de forma simplificada, reduzida e com o olhar restrito da casualidade. 

O pensamento complexo de Morin extrapolou das ciências exatas para as diferentes áreas do conhecimento, entre elas, a biologia, a sociologia, a psicologia, a economia, entre outras, com definições e reflexões específicas conforme a particularidade de cada área, reconhecendo a necessidade de diálogo e de integração entre as diferentes áreas. 

O pensamento complexo é uma ferramenta para pensar a realidade, fundamentado no diálogo dos contraditórios (mas que não são excludentes), no holograma (no qual o todo está na parte ao mesmo tempo que a parte está no todo) e na relação recursiva (no qual os próprios efeitos são produtores no processo).

Nesse contexto, vamos pensar o câncer e suas repercussões na vida das pessoas que lutam contra a doença e dos seus familiares, focando nos aspectos nutricionais.  

O câncer é uma das doenças que mais mata no mundo e, apesar das tecnologias avançadas e dos investimentos contínuos em pesquisas, todos os anos faz milhões de vítimas. De causa multifatorial, estudos mostram que aproximadamente 1/3 de todos os tipos de câncer pode ser prevenido. Por isso, existe um conjunto de orientações de medidas de prevenção com redução de risco, embora pouco valorizadas pela maioria dos sete bilhões de habitantes do planeta. Entre os riscos, eu destaco a obesidade (fator de risco para 12 tipos de câncer) e o consumo de álcool (fator de risco para 7 tipos de câncer).

Não obstante a importância da prevenção, minha temática ficará circunscrita à pessoa com câncer que terá uma via crucis a percorrer. Independentemente do tipo de câncer, tipo de tratamento, do estadiamento a doença, ou mesmo do sistema de saúde (se público ou privado), em algum momento as questões nutricionais vão aparecer – seja por causa do emagrecimento espontâneo (comum em alguns casos de câncer avançado), das dificuldades digestivas (provocadas pela quimioterapia, por exemplo); ou decorrente das dúvidas alimentares que, após o bombástico diagnóstico, povoam a mente dos doentes e de seus familiares. 

Em tese, o Nutricionista é o profissional mais apto para cuidar dessas questões, orientando, esclarecendo, intervindo, ajudando na redução dos impactos provocados pelos tratamentos e no controle de sintomas, oferecendo atendimento integrado e humanizado que promova a qualidade de vida tanto para o doente, quanto para sua família. No entanto, aquilo que deveria ser feito não ocorre de modo concreto, embora preconizado nas diretrizes nacionais e internacionais e regulamentado no Plano Nacional de Alimentação e Nutrição, conforme publicação do Ministério da Saúde:  

“A Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) tem como propósito a melhoria das condições de alimentação, nutrição e saúde da população brasileira, mediante a promoção de práticas alimentares adequadas e saudáveis, a vigilância alimentar e nutricional, a prevenção e o cuidado integral dos agravos relacionados à alimentação e nutrição.” (Brasil, 2013)

Partindo da premissa que a alimentação adequada é uma estratégia terapêutica que ajuda o doente a: fortalecer o sistema imune, resistir melhor aos tratamentos anticâncer, mitigar ou evitar a desnutrição, reduzir as complicações cirúrgicas, ter mais força e disposição física e emocional, entre tantos outros benefícios, a pergunta a ser feita é: O que impede que a assistência nutricional seja uma rotina concreta (e de qualidade) em qualquer serviço de saúde, público ou privado, em todas as fases do câncer, inclusive nos cuidados paliativos?

A partir do pensamento complexo de Morin, podemos entender que a assistência nutricional faz parte de um sistema composto por diversos elementos (fisiológico, patológico, psicológico, social, financeiro, cultural, existencial, etc.) e que esses elementos são igualmente compostos por outros elementos, dentro das suas especificidades.  Entretanto, olhar cada elemento separadamente (por exemplo, o patológico, ou seja, a anorexia do câncer) buscando sua compreensão resulta apenas na simplificação do problema, o que não contribui para a solução dele. Logo, a assistência nutricional demanda de um olhar profundo, abrangente e transdisciplinar, voltado para todas as suas repercussões – no indivíduo, na família e nas demais disciplinas que dialogam no cuidado integral. Igualmente, a assistência nutricional é impactada pelos diferentes elementos e deve ser avaliada em que grau é afetada.

A assistência nutricional do paciente com câncer apresenta sua complexidade, visto que é uma parte do cuidado integral, o que nos permite dizer que é um elemento do todo. Logo, a assistência nutricional (uma parte do todo) pode ser compreendida como essencial e necessária para que o cuidado integral (o todo) seja efetivamente satisfatório nos seus objetivos e resultados.

De acordo com o pensamento complexo, o diálogo dos contraditórios é capaz de unir princípios antagônicos, por exemplo, unir a assistência nutricional, considerada não farmacológica, aos tratamentos farmacológicos, tornando-os inseparáveis e essenciais para compreender a mesma realidade, ou seja, a resposta terapêutica do doente e a sua qualidade de vida. Conforme várias pesquisas já demonstraram, a perda de peso e a desnutrição em pacientes com câncer são fatores independentes associados a resultados clínicos negativos, que levam ao prognóstico desfavorável, devido ao aumento da toxicidade dos tratamentos anticâncer, à redução ou interrupção do planejamento terapêutico e, à redução da qualidade de vida.

Considerando a relação recursiva, na qual o elemento é, ao mesmo tempo, determinado e determinante, podemos dizer que a assistência nutricional quando oferecida de modo oportuno favorece o doente, contribuindo para um desfecho clínico favorável, conforme já citado. Entretanto, a mesma assistência nutricional, quando negligenciada prejudica o doente. Isso, sem falar nas repercussões sociais, emocionais, financeiras que o doente e seu familiar estarão submetidos, por causa de uma ação, ou melhor, da ausência de uma ação.

Refletir um pouco sobre a assistência e suas consequências positivas e negativas sob o prisma do pensamento complexo de Edgar Morin nos faz compreender o quanto o diálogo entre diferentes disciplinas podem ajudar-se mutuamente no alcance do objetivo; o quanto uma ação produz várias reações, o quanto de cada processo nos ajuda a compreender melhor a realidade.

Diante do exposto, ficam as perguntas:

1)   De que forma o pensamento complexo nos ajuda a compreender a necessidade de dialogar com as outras disciplinas que, embora distinta, são complementares no cuidado integral do paciente com câncer?

2)   Como podemos oferecer, de modo concreto, um cuidado integral ao doente com câncer e à sua família, evitando (ou reduzindo) os sofrimentos evitáveis, inerentes à evolução da doença?

Bibliografia consultada

Arends J, Bachmann P, Baracos V, et al. ESPEN guidelines on nutrition in cancer patients. Clin Nutr. 2016;36(1):11-48.

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília, 2013.

 de Pinho NB, Martucci RB, Rodrigues VD, et at. Malnutrition associated with nutrition impact symptoms and localization of the disease: Results of a multicentric research on oncological nutrition. Clin Nutr. 2019 Jun;38(3):1274-1279.

 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre: Sulina; 2015.

https://www.aicr.org/resources/media-library/what-you-need-to-know-about-obesity-and-cancer/

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